A mulher mais tatuada do Brasil e o rapper e escritor Afro-X, que é ex-presidiário, saíram em defesa das detentas de uma prisão no interior do estado de São Paulo que denunciaram ter sido obrigadas a apagar os desenhos que tinham na pele.
De acordo com a ONG Pastoral Carcerária, as mulheres presas no Centro de Ressocialização Feminino de São José do Rio Preto, a 438 km da capital, tiveram de retirar as tatuagens sob pena de serem transferidas para outra unidade. Elas disseram que usaram álcool, removedor de esmalte, cloro, solvente e até cinzas de cigarro. Fotografias mostram as lesões, marcas e queimaduras nos corpos das mulheres.
Ana Carla Sampaio, de 31 anos, e Cristian de Souza Augusto, de 36 anos, souberam da repercussão do caso pela televisão e pela internet, respectivamente. Em comum com as detentas do interior paulista, Ana tem as tatuagens - em 80% do corpo -, recorde reconhecido pelo site Rank Brasil, e é tatuadora. Cristian, nome verdadeiro de Afro-X, também possui pinturas espalhadas na pele. Além disso, é conhecedor do sistema prisional no país. Ele ficou 14 anos preso por assalto à mão armada (metade desse período em regime fechado).
Procurados na terça-feira (15) pelo G1, os dois aceitaram conversar por telefone sobre o episódio em São José do Rio Preto.
“Eu achei um absurdo o que fizeram com essas presas. Eu acho que não era motivo para a cadeia obriga-lás a retirar a tatuagem. Geralmente, tatuagens têm significados. Servem para homenagear ou identificar alguém. Com as detentas não deve ser diferente. Para elas tinha algum sentido ter aqueles desenhos no corpo”, disse Ana Carla, que mora em Osasco, na Grande São Paulo.
Sobre os produtos usados para eliminar as ‘tattoos’ das detentas, a mulher mais tatuada do país disse que “foi uma tortura o que fizeram com elas”. Ana Carla, que também trabalha produzindo desenhos nos corpos de outras pessoas, explicou que as presas vão ficar com sequelas físicas e danos emocionais.
“A primeira coisa que pensei quando vi pela TV as imagens das marcas das tatuagens foi: ‘Que dor’. Na hora em que vi, imaginei a dor que elas passaram. É a primeira vez que escuto alguém dizer que uma pessoa arrancou tatuagem com esses produtos, como solvente. Como profissional da tatuagem sei que o método mais indicado para se retirar um desenho do corpo é o uso do laser“, disse Ana Carla, que não sabe dizer quantas tatuagens possui.
Na pele
Afro-X, que conviveu com tatuadores de cadeia durante o período em que foi presidiário, afirmou que o que aconteceu com as presas de São José do Rio Preto ainda é reflexo de algum diretor do presídio que tem preconceito com a tatuagem. “Tatuagem já foi discriminada como coisa de marginal. Mas agora qualquer ‘patizinha’ tem. Essa pessoa que fez isso com as presas tem uma mentalidade muito fechada. E se parente dela tiver tatuagem, vai ter de jogar solvente também para tirar o desenho?”, questionou Afro-X.
Afro-X, que cumpriu pena, afirma que nunca viu um presidiário ser obrigado a retirar tatuagens (Foto: Divulgação) (Foto: Divulgação)
De acordo com ele, quem obrigou as presas a retirar a tatuagem cometeu abuso de poder. “Como uma pessoa dessa conseguirá se recuperar diante desses traumas? Tatuagem contribuiu para desordem? Se fosse assim, filhinho de papai estaria ‘penado’. Nunca vi essa questão de fazer detento tirar tatuagem no período em que estive preso. Tem tantas coisas mais importantes. O foco principal deveria ser a ressocialização do preso”, disse o rapper.
O advogado Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe) em São Paulo, classificou como grave a denúncia de que detentas foram obrigadas a apagar tatuagens com produtos improvisados.
“A cadeia não pode incentivar o uso de tatuagem, que sempre é feita de forma clandestina. Tatuagens não são permitidas dentro do sistema prisional, geram problemas de contágios, inflamações, hemorragias. Mas se a presa já tem tatuagens, ninguém pode obrigá-la a retirá-las. Se isso ocorrer, passa a ser constrangimento ilegal, humilhação”, afirmou Alves.
Tatuagem de detento (Foto: João Wainer/Divulgação)
As tatuagens em cadeias são feitas de forma clandestina. Geralmente, são usadas agulhas e até ‘maquininhas’ improvisadas, com pilhas e canetas, como mostra a monografia feita pelo coordenador geral do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná, Cezinando Paredes. Por e-mail, sua assessoria de imprensa autorizou o G1 a divulgar as fotos do levantamento que ele fez de diversas tatuagens de presidiários.
Veja galeria com fotos de tatuagens de presidiários
Justiça
A Justiça de São Paulo deve ouvir as mulheres presas de Rio Preto ainda nesta semana para apurar a denúncia feita pela ONG. “Com base nas investigações realizadas, nós teremos uma conclusão efetiva para a adoção de qualquer medida cabível”, disse o promotor Antonio Baldin.
A Defensoria Pública informa que as detentas podem ter sido vítimas de abuso de autoridade. “Não existe uma razão lógica ou qualquer norma que imponha as sentenciadas a estarem retirando esses desenhos que não atrapalham o bom andamento da unidade prisional e não representam risco nenhum”, afirmou o defensor público Leandro de Castro Silva.
A Secretaria da Administração Penitenciária informa que instaurou sindicância por meio da Corregedoria para apurar o ocorrido.